Universidade e Cultura.

Daniel Peres
5 min readMay 20, 2022

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Texto em apoio à chapa Somos UFBA Sempre, com Paulo Miguez e Penildon Silva Filho

O Observatório do Conhecimento divulgou uma pesquisa recente sobre os cortes no orçamento da educação e da ciência, composto pelos orçamentos do Ministério da Educação, Ciência e Tecnologia e, também, de emendas parlamentares. No acumulado de 2014 para cá, os cortes devem somar quase R$ 100 bilhões[1]. A situação é de iminente colapso e de consequente inviabilidade do Sistema das Universidades Federais.

É verdade que os cortes não começaram com o governo Bolsonaro, pois tiveram início em razão de políticas econômicas mal-conduzidas pela administração petista, que acabaram por exigir, da parte do governo Dilma, restrição orçamentária. Isso faz parte do jogo: discutimos sobre as virtudes e vícios de políticas econômicas, discordamos quanto às razões de sucessos e fracassos, apoiamos ou nos opomos à definição de prioridades, tudo isso é parte da democracia.

Com o governo Bolsonaro, a disputa muda de figura. Primeiro porque, como o representante maior do governo militar afirmou, seu objetivo é destruir tudo, isto é, destruir todo e qualquer traço de cultura democrática que ganhou desenho institucional com a Constituição de 1988. Seu sucesso nessa empreitada deixará um rastro de destruição para o país, com o quase colapso de nossas Universidades Federais.

A tragédia que ocorre no MEC sob o governo Bolsonaro só encontra rival na que ocorreu na Saúde, que foi responsável, até agora, pela maior parte das 700 mil mortes. A tragédia do MEC representa, porém, um outro tipo de morte: a morte do sonho de termos um país com justiça social, com uma cultura democrática forte e com um desenvolvimento econômico-social climaticamente responsável. Com a destruição de nossas universidades públicas, o país acabará inviabilizado.

O ódio deste governo pelas universidades públicas não pode ser entendido se as olhamos apenas como espaço em que se produz ciência e se transmite conhecimento. Elas são este espaço, mas não apenas. Pois são compostas por pessoas cujas atividades estão voltadas para um fim comum. Na medida em que agem conjuntamente, estabelecem relações, instituem uma forma de sociabilidade na qual indivíduos com histórias de vidas distintas se reconhecem como iguais, trabalham em conjunto, formam uma comunidade. Numa sociedade desigual, excludente, como a brasileira, o potencial democrático da universidade é tremendo, pois ela mostra que uma outra sociabilidade, que incluiu a diferença e combate, portanto, a exclusão, não é apenas possível, é real: a universidade existe, e por isso o governo Bolsonaro precisa destruí-la. Destruí-la apenas não porque ela permite mobilidade social, o que ela efetivamente faz; mas sobretudo porque ela aponta para uma outra forma de sociabilidade.

Ver esta dimensão da universidade é vê-la como instituição cultural, como instituição que atua no registro da representação. O exercício das artes, que também tem e deve ter espaço nas nossas universidades, é sem dúvida um momento da universidade como cultura. Por mais fundamentais que sejam, as artes, porém, não encerram toda a cultura. De todo modo, a quase que identidade que se pretende entre arte e cultura tem a sua razão de ser. Pois, assim como a arte nos obriga a um outro olhar, amplia nossa sensibilidade e nosso modo de pensar, assim também o faz a universidade. É o que quero dizer quando afirmo que ela, como instituição, atua, deixa o seu traço, no registro da representação. Assim como a cultura, a universidade é, também, reflexão. Com isso não pretendo que a universidade tenha o monopólio da reflexão, que ela é a única instituição capaz de refletir. É evidente que há pensamento fora da universidade, e a nossa imprensa é brutalmente atacada justamente por isso, assim como há arte fora da universidade, que também está sob violento ataque. Mas ao menos para nós, se nós queremos reconstruir este país e se queremos manter viva aquela atividade reflexionante que constitui uma sociedade democrática, precisamos defender a universidade.

Esta compreensão da universidade põe no centro a questão da extensão universitária. Já estamos longe da visão de que extensão era prestação de serviço. Mas é preciso avançar mais ainda em um outro aspecto. A extensão não é apenas o momento em que a universidade sai do campus, é o momento em que o campus se abre para a sociedade. Para usar uma imagem, a extensão deve compor os vasos comunicantes entre universidade e sociedade. Nesta comunicação, ambas devem sair modificadas. Uma das tarefas será justamente estreitar ainda mais laços com atores governamentais e da sociedade civil, ou seja, temos de ampliar nossa capacidade de diálogo e de interação com os mais diversos setores, sempre tendo em vista o interesse público e a consolidação de uma cultura democrática.

A tarefa é titânica, mas não temos alternativa. Precisamos reconstruir o país, precisamos aprofundar a democracia, precisamos democratizar a democracia, universalizar a experiência democrática, tornar real a ideia de que vivemos, todos, em um estado democrático de direito. A universidade é central nesta tarefa, e no tripé que a define a extensão será fundamental: a universidade, junto com a imprensa e as artes, com órgãos de governo e da sociedade civil, devem, para usar uma ideia de Ilona Szabo, se apresentar como um espaço cívico e ser o grande galpão em que poderemos expor toda a nossa imaginação.

É porque tenho esta visão do momento que estamos vivendo que meu apoio, como não poderia deixar de ser, vai integralmente para a chapa “Somos UFBA Sempre”. Precisamos recompor o nosso orçamento, mas esta é uma batalha que terá seu momento decisivo em outubro. Agora temos de reafirmar nosso compromisso com um certo modelo e compreensão do que seja uma universidade, modelo e compreensão que vejo representados na chapa Miguez e Penildon. Não tenho ilusão de que será fácil, mas tenho toda a confiança de que com eles será possível. Dias 24 e 25 de maio vamos todos participar da consulta!

[1] A pesquisa se encontra em http://observatoriodoconhecimento.org.br/perdas-no-orcamento-do-conhecimento-podem-chegar-a-r-100-bilhoes-em-2022/ e contou com repercussão importante na mídia: https://educacao.uol.com.br/noticias/2022/05/16/perdas-verbas-educacao-pesquisa.htm; https://oglobo.globo.com/brasil/educacao/noticia/2022/05/ciencia-brasileira-perdeu-quase-r-100-bilhoes-por-cortes-desde-2014-diz-estudo.ghtml; https://www.metropoles.com/brasil/educacao-br/instituicoes-federais-de-ensino-perderam-r-100-bilhoes-desde-2014; https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/corte-de-verbas-em-ciencia-e-tecnologia-e-obstaculo-ao-desenvolvimento-do-pais.html

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Daniel Peres

I work with political philosophy and its history, with my focus directed to the subjects of soveraignty, representation, democracy and, of course, power.