Tirem as mãos da CAPES!

Daniel Peres
8 min readApr 17, 2021

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A notícia da nomeação da nova presidente da Capes, tão logo anunciada, começou a gerar uma forte reação no mundo da pesquisa e da ciência. Afinal, a vida acadêmica de Claudia de Toledo não dá prova de que tenha a estatura necessária para o cargo, pelo contrário. A estas críticas vêm se somar agora as críticas do Pastor Marco Feliciano, que pede a cabeça da nova presidente da Capes por ela respeitar o trabalho de Paulo Freire, por considerar que diferenças de orientação sexual são um direito humano e por julgar Bolsonaro um totalitário.

As críticas, porém, não se somam, antes se opõem, porque são muito distintas. Enquanto ao deputado interessa uma presidente da Capes “terrivelmente cristã”, à comunidade de pesquisadores e da pós-graduação interessa uma presidente comprometida com os valores da ciência, da liberdade da pesquisa, da qualidade acadêmica e sim, da democracia.

Quando Jair Bolsonaro foi eleito, sabia-se exatamente o que esperar dele. Ele foi inequívoco em sua afirmação de que não estava para construir nada, e sim para destruir. Destruição é o que temos visto nestes dois anos de seu governo, que encontrou na pandemia uma aliada em seu projeto de destruição e morte: morte de pessoas, morte de instituições, morte de uma ideia de país. Falo em ideia porque um país não é apenas um território no qual se encontram pessoas, instituições, normas e práticas. Um país é sempre, em alguma medida, uma ideia de país, ou um país imaginado, se preferirem, que contém ainda uma dimensão de projeto, de algo a ser ainda realizado.

A Constituição de 1988 é um momento fundamental desta realização. É fundamental, não fundante, pois é o resultado de um processo lento, cheio de bloqueios e interrupções, de realização de um país mais justo, mais inclusivo, mais democrático. A Constituição de 1988 representa uma ruptura inequívoca com a ditadura que se instalou no Brasil de 1964 a 1985. Por outro lado, ela significa a retomada e a defesa de projetos anteriores à ditadura. Dentre estes projetos está a criação de um sistema federal de ensino superior, em geral, e de um sistema de pós-graduação, em particular. Ambos, como projeto, surgem no Brasil dos anos 1950–60, o Brasil que a ditadura tentou matar, mas não conseguiu.

Diferentemente, portanto, do que ocorreu em outros lugares, em que universidades e sistemas universitários são a realização de séculos, de um processo lento e constante de ajuste fino de práticas e negociação de critérios, no nosso caso, como o processo se deu num curto tempo, no momento em que sistema ganhou um escala nacional e diversificada, foi necessário pactuar e assentar regras mínimas, critérios mínimos de reconhecimento. Cada área do conhecimento vai se organizando, então, em torno de certas lideranças, que por sua legitimidade inter pares ocupam, por assim dizer, a função de regra. Como as áreas são variadas e conhecem conflitos internos, estes acabavam por encontrar sua solução a partir do diálogo entre as áreas, ou melhor, através de figuras cuja competência era reconhecida, de forma transcendente, na comunidade maior dos pesquisadores de todas as áreas. A SBPC e as diversas Associações de Pós-Graduação são centrais neste processo.

Fundamental para a consolidação do sistema, porém, foi a criação do Sistema de Avaliação dos Programas de Pós-Graduação, sob a responsabilidade da Capes. O sistema é tão importante, sua autoridade é de tal modo reconhecida que mesmo as Universidades tendo autonomia para abrir cursos de pós-graduação, elas se submetem ao juízo autorizativo da Capes. Assim, para que um diploma de pós-graduação seja reconhecido nacionalmente ele deve antes ser reconhecido pela Capes. Na prática a Capes não é, assim, apenas a agência de fomento e de avaliação, o que já não seria pouco; ela é, sobretudo, a instância transcendental em que todos nos reconhecemos. Seu reconhecimento como tal se dá, no entanto, porque critérios e valores e procedimentos são pactuados e repactuados sem que se perca de vista, jamais, a excelência como horizonte.

Imagem extraída do Lattes da atual presidente da Capes

Todos sabemos que o caos Bolsonaro, desde o seu primeiro momento, declarou guerra aberta às Universidades Federais. Primeiro com o idiota e abobalhado Velez; depois com o idiota e violento Weintraub; agora com o idiota e sonso Milton Ribeiro. Os dois primeiros sempre consideraram as Universidades Públicas, em especial as Universidades Federais, como local de produção em massa de militantes comunistas. Na sua brevíssima, mas inesquecível passagem, Velez chegou a afirmar, inclusive, que a ditadura militar havia entregado a pós-graduação aos comunistas, como uma forma de, na sua cabeça, aplacar a guerrilha. Mas ainda que as Universidades tenham estado sob forte ataque, em alguns casos com a nomeação de reitores interventores, a pós-graduação até agora não tinha sido alvo privilegiado do governo federal. Sem dúvida ela vinha sofrendo um brutal corte de verbas. Os princípios compartilhados por todos nós que produzimos a pesquisa e a ciência do país, porém, estavam preservados. Até agora.

O que mudou? No dia 15 de Abril de 2021, o Ministro da Educação nomeou para a presidência da Capes Claudia Mansani Queda de Toledo, Reitora da obscura Instituição Toledo de Ensino, ITE, também conhecido como Centro Universitário de Bauru. Além de reitora, Claudia é doutora em direito e foi coordenadora do único curso de pós-graduação da instituição que dirige e na qual, aliás, obteve o seu título. Mas Claudia não é apenas reitora da instituição: ela é também sua coproprietária. Em bom português, ela é a dona da instituição na qual obteve o título de doutorado. Por essas coincidências que se somam no governo Bolsonaro, o Ministro da Educação e o Ministro da Justiça são oriundos desta mesma instituição.

Nova presidente da Capes é reitora de faculdade na qual ministro da Educação e AGU se formaram, O Globo, 15/04/2021. Materia por Jussara Soares Paula Ferreira

As credenciais da nova presidenta da Capes encorajam qualquer pesquisador a buscar seu currículo. E, de fato, ele guarda surpresas. Algumas são simplesmente patéticas, como considerar participação em reunião de órgão colegiado produção técnica. Já outras não são nada cômicas. A primeira surpresa preocupante está na publicação de artigo em periódico predatório, ou seja, periódicos sem qualquer qualidade, que publicam em troca de pagamento, e que existem por conta da pressão por publicação. Além disso, quase todas as publicações da nova presidenta são em coautoria e um grande número é em coautoria com alunos. A prática da coautoria varia muito de área para área, e não há nenhuma área que condene, sem mais, a coautoria, mesmo com estudantes. Chama a atenção, contudo, que, numa área como o direito, o autor seja apenas coautor, e coautor contumaz com estudantes.

O estranhamento merece uma explicação mais detida. Em certas áreas as pesquisas são extremamente segmentadas, de modo que o trabalho de um pesquisador depende do trabalho de colegas, em geral realizados em outros laboratórios. Assim, a coautoria muitas vezes expressa a divisão do trabalho, a dependência intrínseca à forma de produção de conhecimento e a necessidade de compartilhar dados. Ou então, como no caso das humanidades, a coautoria é a elaboração conjunta de uma ideia, uma interpretação, um argumento. Nas ciências humanas — mesmo nas ciências sociais aplicadas, como é o caso de direito — a coautoria é muito mais rara. Não é porque um pesquisador discute ideias com colegas que eles são coautores em um trabalho. Afinal, pesquisadores trocam ideias sempre, discutem constantemente seus resultados de pesquisa. Se as conversas e discussões têm impacto em um trabalho, isso não significa coautoria. Nas Humanidades, coautoria significa o trabalho extremamente difícil de pensar, elaborar e expor juntos, discursivamente, uma ideia. A rigor, ambos são autores de todo o texto.

Imagem extraída de Lattes da nova Presidente da Capes

Assim como periódicos são predatórios, arrancando dinheiro de pesquisadores que não conseguem publicar em boas revistas, também professores podem ser predadores, utilizando-se do trabalho de orientandos para aumentar a própria produção. Ainda que se não possa afirmar ser esse o caso da atual presidenta da Capes, o programa do qual ela foi coordenadora teve uma péssima nota na última avaliação da Capes. Quando se observa a ficha de avaliação desse programa, depara-se com os seguintes juízos: a) produção qualificada — Fraco; b) Distribuição da Produção — Insuficiente. A comissão avaliou a produção do programa com o conceito Fraco. O programa recorreu, e o conceito foi mantido. Mais ainda, na avaliação total a comissão atribuiu ao programa a nota 2 (de uma escala que vai de 1 a 7), o que implicaria o seu fechamento. Implicaria, em tese; não implicou de fato, pois o programa conseguiu manter a nota 4 com um recurso à presidência da Capes, que contrariou não só a comissão da área, como também o Conselho Técnico-Científico (CTC) da Capes.

Imagem retirada da ficha de avaliação do Programa de Pós-Graduação que teve como coordenadora a atual presidente da Capes

Resumindo. A nomeação de Claudia de Toledo é uma afronta a todos os critérios que vêm sendo pactuados e repactuados por décadas entre pesquisadores de todas as áreas do conhecimento no Brasil. Ela não possui qualificações mínimas para assumir a presidência da agência. Além de não ter qualquer produção relevante, ela sequer apresentou, como orientadora, um doutorado para defesa. Sua participação em outros programas de pós-graduação, mesmo como banca, é praticamente nula. Ela não tem estatura acadêmica para presidir o mais importante órgão de fomento e avaliação da Pós-Graduação do país. Não conhece o sistema, não tem experiência. A nomeação lhe dá autoridade legal, mas não lhe confere a autoridade que, para nós, é a mais importante: a autoridade acadêmica (caesar non est supra grammaticos). Alguém com o seu perfil não irá resistir à enorme pressão para o afrouxamento dos critérios de avaliação, pressão exercida sobretudo, mas não apenas, por instituições privadas.

Assim que assumiu a Presidência da Capes, Claudia de Toledo publicou uma carta de intenção, na qual ela afirma uma verdade. A Capes é um órgão do Estado, e não um aparelho de governo! Jair Bolsonaro pode nomear o ministro de sua preferência, afinal, trata-se de cargo político, de governo. Mas na Capes, não. Na Capes, a nomeação deve obedecer a critérios que são compartilhados pela comunidade de cientistas, pesquisadores, docentes, alunos e técnicos que fazem os Programas de Pós-Graduação. Não é porque não cabe à comunidade indicar quem ocupará a Presidência que ela tem de aceitar qualquer nome que lhe seja imposto. Afinal, toda comunidade é feita de normas escritas e não escritas. Cabe a nós dizer que normas vamos usar. Se aquelas que regem a administração e os atos do governo, ou se aquelas que nos permitiram, quando então não havia regra escrita, criar o que hoje é um dos mais importantes sistemas de pós-graduação do mundo.

Imagem retirada da ficha de avaliação do Programa de Pós-Graduação que teve como coordenadora a atual presidente da Capes

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Daniel Peres

I work with political philosophy and its history, with my focus directed to the subjects of soveraignty, representation, democracy and, of course, power.