O fim da beleza ou o fim da picada? ou como o Brasil Paralelo vê a arte com os olhos de Adolf Hitler

Daniel Peres
12 min readMar 9, 2022

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1) Resolvi fazer este fio para o Twitter depois da polêmica sobre a exibição do “documentário” da Produtora Brasil Paralelo (BR//) em uma Universidade Federal. Minha razão não está em censurar o conteúdo da peça, como se as ideias não expostas pudessem ser discutidas.

https://twitter.com/brparalerdo/status/1499179117241155584

2) Lidar com filosofia, teoria, história da arte, ou estética, é lidar com as “denúncias” feitas de modo cotidiano. Afinal, a questão da natureza da arte, do discurso ou linguagem artísticas, são intrínsecas a qualquer discussão informada sobre arte e sentimento na arte.

3) É ingênuo acreditar que a BR// quer travar alguma discussão, pois ela processa pesquisadores que questionam o valor do que ela apresenta. Me oponho ao uso que a BR// faz de uma instituição séria para fins de promoção, instituição que trata, por outro lado, de desqualificar.

4) Dedico este texto a Cajo, Antonio Carlos Rizzo Neis, Prof. de POA que, durante uma exposição de arte reagiu mal a provocação de um membro do MBL. Cajo se viu forçado a abandonar o trabalho para se proteger, acabou fragilizado e não resistiu a um câncer.

5) Ao dedicar o fio a Cajo, dedico também a Cancelier, reitor da UFSC que, perseguido, suicidou-se, e a Rosana Pinheiro Machado, Débora Diniz, Márcia Tiburi, Carlos Zacarias e Mayara Balestro, Eduardo Pereira, Flávio Casimiro, Karine Firmino, Clayson Felizol.

6) Aqui link para matéria sobre o tipo de debate que o BR// quer travar. Ela contém ainda uma relação dos pesquisadores e órgãos da imprensa judicialmente assediados. Imagino que a relação tenha aumentado:

https://theintercept.com/2021/12/09/brasil-paralelo-lanca-ofensiva-judicial-para-calar-criticos-e-reescrever-a-propria-historia/

7) Mas vamos ao documentário O Fim da Arte. Ele é composto de 4 partes: Abertura, Ato I: O Rosto da Arte, Ato II: Arte Viva e Ato III: O Sagrado e o Profano. O documentário é apresentado, na abertura, como original e repleto de “autoridades”.

8) Ocorre que não há nenhuma originalidade e tampouco conta com qualquer autoridade. Essas são teólogos, historiadores, arquitetos, matemáticos, artistas plásticos. Todos sem qualquer relevância, não importa a língua que falem. Quanto à originalidade…

9) Só se deixarmos de lado a avaliação que Hitler e os nazistas faziam da arte moderna como “arte degenerada”. Afinal, a peça do BR// compartilha desta mesma avaliação. São tantos os links sobre o tema. Vale a pena dar uma olhada. https://pt.wikipedia.org/wiki/Arte_degenerada

10) O título do “documentário” joga com a ambiguidade do fim da beleza, onde fim pode ser entendida como término, abandono da beleza, mas também como finalidade, função, de modo que “beleza” é o adequado, o agradável, o que provoca prazer.

11) A retórica, além do apelo a falsas autoridades, é marcada por uma estética grave, pesada, como que para dar ar de seriedade ao que é uma mistificação brutal. O “argumento” faz uma salada de biologia, psicologia, matemática, física, filosofia, teologia…

12) Boa parte da discussão gira em torno da arquitetura, e isso por duas razões, pelo menos: a) o vínculo necessário entre uma obra arquitetônica e a sua função; b) a importância da arquitetura gótica, presente nas catedrais, expressão alta da arte no medievo

13) Sobre a idade média volto logo mais, começo pela finalidade. A arquitetura tem por fim trabalhar o espaço de modo a nos dar uma experiência de conforto, de aconchego. Segundo uma das autoridades, nada nos é mais tranquilizador do que a visão de rosto.

14) É por esta razão que uma criança, quando desenha uma casa, desenha uma casa com a forma de um rosto. Ñ é porque este é o padrão habitual, pois que se mostrou o mais adequado a partir do desenvolvimento técnico. Ñ, o desenho responde a uma psique profunda.

15) Porque deve responder a esta necessidade psicobiológica, casas, prédios, devem ter feições humanas. Uma casa, portanto, é tanto mais casa quanto mais ela se parece com um rosto. Um prédio deve ter escala humana, deve passar tranquilidade.

16) Para quem não sabe: a casa “degenerada” é um desenho do projeto da Casa de Vidro, de Lina Bo Bardi, arquiteta italiana moderna, que projetou, entre outros prédios, o MASP. A Casa de Vidro fica em São Paulo: http://portal.institutobardi.org/

17) Claro que a esta altura já se vai preparando o ataque à arte moderna, que é marcada pela abstração, que coloca em questão não apenas o caráter figurativo da arte, mas, de modo ainda mais radical, a sua dimensão mesma de representação.

18) A passagem para a pintura é feita por alguém cujas pinturas têm forte cunho religioso. Para ele, é pintura de um rosto que a arte melhor realiza sua função de comunicar um sentimento. Pintar algo que ñ um rosto é pintar algo carente do valor objetivo da verdadeira arte.

19) Mas o rosto humano não desaparece apenas da arte. O mundo moderno é um mundo frio, mecânico, impessoal, agressivo, desumano. Trabalhos de Miró, de Picasso, surgem neste ponto da narração, como que para provar a desumanidade da arte.

20) Vamos fazer um exercício, e ver como é este paralelismo entre crítica social barata, psicologia de quinta, arquitetura merda e compreensão nazista da arte. Quais das obras abaixo são obras de arte? Funciona o que querem provar?

21) Em paralelo à questão do rosto, da verdade da obra de arte, corre uma outra questão: a habilidade técnica. Só é artista que domina uma técnica, técnica de reprodução do real. O artista não é alguém que, através da arte, coloca uma questão. Ele copia, reproduz. Sério?

22) O problema é antigo, está aí desde Platão pelo menos. O interessante é que é esta visão que fazia com que Platão não visse qualquer valor na arte, que era, para ele, cópia de um mundo que era cópia de uma ideia. Foi preciso muito para a arte dar uma resposta à altura.

23) Quando a arte abstrata entra na narrativa estamos em um Mosteiro, onde um pintor obscuro vai nos dizer que, no fundo, ñ somos capazes de distinguir entre uma tela de Jackson Pollock e um pedaço de trapo sujo de tinta. Dos trabalhos abaixo, qual é o do tal pintor

24) Duchamp é a “desmoralização” da arte, quer acabar qualquer padrão e tornar possível a todos ser artista, mesmo sem ter habilidade. Afinal o que vale é o sentimento de cada um, ñ a experiência resultado da habilidade do artista. Que bosta de experiência este lixo provoca?

25) Se vc acha que a experiência com a arte se realiza apenas diante de um quadro, p. ex., realmente você vai ter alguma dificuldade para entender o trabalho de Duchamp. Mas quem definiu este limite? E quando faz parte da experiência da arte duvidar de seu próprio limite?

26) É esta experiência que se faz quando se expõe, em uma galeria de arte, um vaso sanitário. Já foi feito, não tem sentido fazer novamente. Mas foi importante ter sido feito. A busca por sentido passa por experimentar limites. A beleza, por assim dizer, está aí.

27) A esta altura já apareceu @lf_ponde. O gênio para quem todo artista contemporâneo é um picareta — imagino que o mesmo juízo vale para professores universitários. Pondé ainda concede algo a Picasso, que é moderno. Por quê?

28) Segundo Pondé, para vc compreender pq uma obra está em uma bienal vc precisa de um manual. Para ele, a discussão sobre arte contemporânea é uma conversa de loucos. Num documentário cujo lodo quer assentar a ideia de arte degenerada isso não é para fracos.

29) Ele não afirma que desconhece as questões da arte contemporânea, ou que elas não interessam a ele. Ñ, artistas contemporâneos são picaretas e aqueles que discutem seus trabalhos são loucos. Pq ele não vê razão, temos de aceitar que ñ há razão? Sou louco ou picareta?

30) É óbvio que muito que é hoje exposto, muito do que hoje está em bienais, ñ vai “ficar” como momento importante da história da arte e da experiência artística. Mas como saber o que fica e o que não fica? A partir do que já foi feito? Da “tradição”?

31) Querer fundamentar um padrão em uma “tradição”, como se a chave para a realidade, e para a arte, estivesse contida nela, é um ponto importante no discurso desta turma, e daria por si só um fio. Aqui 3 títulos sobre o assunto:

32) A 2a, o Rosto na Arte, termina, e o que temos é uma defesa da arte figurativa contra a abstração; da tradição, contra o moderno, contra a inovação; da adequação, do familiar, contra o estranhamento; da aceitação e complacência, contra a crítica.

33) Em grande medida todo o argumento se baseia, digamos assim, em algo a que somos levados a acreditar e que no mais das vezes não colocamos em questão: que a arte produz uma experiência estética, e que a experiência estética deve ser prazerosa, agradável.

34) A arte deve nos reconciliar com o mundo, mesmo quando a experiência do mundo, do real, é a experiência da opressão. Ñ se deve, portanto, de colocar o mundo em questão. Pelo contrário, se deve aceitá-lo. Todo o mal vem pq queremos mudar o mundo.

35) A 3a, A Arte Vive, se concentra na arquitetura, em uma visão “tradicionalista” da arquitetura. Fazendo uma série de associações e sugerindo paralelos, sempre de modo a querer dar um ar de objetividade, defende-se que devemos, hoje, continuar a construir prédios assim:

36) É toda a arquitetura moderna (imagens abaixo) que vai ser descartada, da construção de prédios públicos ao mobiliário. Imagens de grandes cidades, em geral de seus espaços degradados, são “contrastados” com marcos importantes da arquitetura “tradicional”.

37) O final nos reserva uma surpresa, mas vamos com calma. A 4a parte é a mais importante, é nela que todo o lodo ideológico transborda. Se na 3a parte se fazia apelo a um instinto estético biológico, na 4a quem cumpre a função de fundamento é a espiritualidade.

38) Saem as ciências “naturais” e entram a filosofia, a teologia, a história, com pérolas do tipo: “a beleza é a correspondência da existência do ser. Uma coisa é bela porque existe, a beleza da pedra está no ser pedra”. Deve ter aprendido Aristóteles com Olavo de Carvalho

39) Aristóteles, porém, é muito “mundano”. A adequação deve ser de outra ordem. Então somos submetidos a uma apresentação pedestre de Platão, de modo a que subordinemos a beleza ao sagrado, a arte ao sacramento, e façamos da arte sacra a verdadeira arte: de Deus e para Deus.

40) Mas é na Idade Média que encontramos os verdadeiros valores do mundo do BR//. Daí o elogio à escolástica, a São Tomás, para quem Jesus Cristo seria o modelo de beleza, é nele que ela se realiza.

41) Com a vinda do Cristo, afirmam, há uma quebra com o mundo grego e se inaugura A REALIDADE MESMA, a CRISTANDADE. Se a arte deve reproduzir o real, ela deve reproduzir os valores cristão. Pois é nela, cristandade, que se realiza o mundo ocidental.

42) Para o BR//, a idade média é o ponto máxima da civilização ocidental. De lá para cá, só decadência. O renascimento, porém, é um problema para eles. Daí que valorizam o que há de continuidade com relação à idade média. Como recusar Giotto, Rafael, Michelangelo?

43) O truque é simples: enquanto os antigos divinizavam o homem, os renascentistas humanizam o divino, rebaixam Deus à condição humana. Eles foram, por assim dizer, tocados pelo pecado da modernidade. Giotto, Rafael, Michelangelo, dão sinais da degeneração

44) O humanismo, o renascimento, é então MORTE, morte da espiritualidade. Expressão da ambição humana, tem início aí toda a nossa miséria. Sério? Temos de discutir esta mixórdia que não separa arte e religião? Temos, né? Infelizmente.

https://pt.everybodywiki.com/Sidney_Silveira#

45) Uma série de imagens em aceleração trata de apresentar a perda da espiritualidade e a ascensão do materialismo. A Liberdade guiando o povo, de Delacroix, é imagem do ponto de não-retorno. Todo o mal contemporâneo tem aí sua origem.

46) O quadro de Delacroix, em nosso imaginário, está ligado à Revolução Francesa. Não é portanto, a arte que está sob ataque; é a modernidade. A Revolução Francesa é um crime. Não chega a ser surpresa, portanto, que participantes do documentário sejam monarquistas.

47) Os valores republicanos de liberdade, igualdade, fraternidade, correspondem à recusa de uma ordem hierárquica natural e, claro, social. Esta é a visão de mundo de fundo do documentário: tradição, hierarquia, ordem.

48) Voltemos à arte: se a arte pagã ainda representava virtudes humanas, a arte moderna irá representar os seus vícios. Momento importante para avaliação, compartilhada com nazistas, de que a arte moderna é degenerada. Humanismo — Iluminismo — Degeneração.

49) Um conjunto de imagens em aceleração representa o Iluminismo. Aqui estão 4 delas, que falam por si. Um conjunto de intelectuais faz com que sua voz alcance o público, e então se tornam tiranos. Voltaire e Stalin são o mesmo! E Kant, é o mesmo que Khomeini? Olavo de Carvalho na veia.

50) O Iluminismo é REDUZIDO a um processo de engenharia social conduzido por intelectuais, que fazem escolhas nada arbitrárias com o propósito de construir, a ferro, fogo e violência, uma nova sociedade. @lf_ponde tem um importante papel neste momento.

51) Uma coisa é criticar ideias, processos, movimentos. Outra, muito distinta, é reduzi-las a um espantalho. Porque é isso que fazem: a modernidade, o iluminismo, são reduzidos a espantalhos para primeiro gerar desconfiança; depois, medo, medo do pensamento.

52) Modernidade é degeneração; Iluminismo é ideologia; duas faces de uma mesma oposição à verdade da tradição. A primeira imagem representa a sabedoria da tradição; a segunda, a loucura da modernidade, sua fé cega na lógica, que quer assumir o papel de Deus.

53) Uma outra sequência de imagens retoma o fio que vai de uma “arte sem rosto, um apanhado de formas”, expressão do delírio do nosso homem moderno, até a nossa degenerescência contemporânea. Vale o destaque para a última imagem:

54) Todas as questões importantes da reflexão acerca da arte são ignoradas em um documentário cuja finalidade declarada era discutir arte. Em seu lugar há um discurso ideológico no pior sentido do termo: mistificação. O mesmo procedimento vale para o Iluminismo.

55) Acima indiquei livros que refletem sobre a arte. Aqui indico 4 que refletem sobre a modernidade. O fio ficou grande, paro por aqui. Talvez o transforme em texto, de modo a aprofundar algumas questões. Vamos ver. De todo modo, acho que ficou claro que a visão de arte apresentada pelo BR// tem muito em comum com a visão nazista, de que via a arte moderna como arte degenerada. Aqui tem um vídeo simples, mas bem legal sobre o Nazismo e Arte Moderna (ou, segundo eles, degenerada)

Qualquer semelhança com o que vem ocorrendo no pais, em especial na Secretaria Especial de Cultura, não parece ser mera coincidência. Mas é isso. Fico por aqui, ao menos por hora.

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Daniel Peres

I work with political philosophy and its history, with my focus directed to the subjects of soveraignty, representation, democracy and, of course, power.