Brasil, terra do desespero

Daniel Peres
5 min readApr 9, 2021

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cemitério Vila Formosa, SP. Foto BW PressFolhapress

O Brasil está sob duas ameaças, ambas letais. Ao vírus Covid-19 soma-se um outro vírus, letal à democracia, o vírus da autocracia. A pandemia varre o Brasil de modo brutal. Quase 4000 mortos por dia, segundo dados oficiais. Não há razão para duvidarmos de que chegaremos a mais de 500 mil mortos, de que seremos o país com o maior número de mortos em todo o mundo. Após um ano de pandemia, uma a cada 3 pessoas que morre no mundo morre no Brasil. O governo brasileiro implementou nenhuma medida de combate. Nada! O governo brasileiro rejeitou todas as ofertas de vacina que nos foram feitas. Todas! A ele interessa o caos social, justificativa para a instalação de uma política autocrática.

Desde o início de seu governo, em 2019, Bolsonaro estressa de modo constante as instituições democráticas. Ataques quase diários à imprensa e a intelectuais, estrangulamento de universidades e órgãos públicos que criticam ou contrariam suas diretivas retrógradas, aparelhamento do estado por mais de 7000 militares em funções civis, participação em manifestações paramilitares pedindo intervenção militar, fechamento do Congresso e do Superior Tribunal Federal.

No que diz respeito ao combate ao vírus biológico, desde o começo o governo Bolsonaro se recusou a fazer o que era necessário para tentar conter a sua disseminação descontrolada: reduzir a atividade econômica, sobretudo aquelas ligadas a atividades não essenciais, dar auxílio para que os trabalhadores pudessem ficar em casa, fazer exames em massa para mapear o espalhamento do vírus e fortalecer o sistema de saúde. O Congresso ainda conseguiu aprovar, contra o governo, um auxílio emergencial para famílias que se viram em situação de extrema fragilidade. Mas entre a saúde da população e a economia, Bolsonaro e seu governo jamais tiveram dúvida: economia primeiro.

A prioridade do presidente e sua equipe econômica acabou por levar ao comando do Ministério da Saúde um general, cujo senso de dever público se resumia na seguinte afirmação: “o presidente manda e eu obedeço”. E o que o presidente manda? Combater o isolamento, desfazer contratos de fornecimento de materiais para os hospitais, e insistir em confundir a população, fazendo-a acreditar que há tratamento para o que não há. Se não estamos completamente sem vacinas, é porque duas instituições brasileiras, públicas, participaram do esforço internacional para desenvolver vacinas. Mas a capacidade de produção dessas instituições é baixa. A compra de muitos insumos depende de acordos internacionais. O Ministério das Relações Exteriores do governo Bolsonaro tem sido obstáculo para esses acordos, em especial com a China. Assim, a população morre, apesar do Brasil ter um sistema de vacinação conhecido no mundo por sua eficiência. Mas para vacinar é preciso ter vacinas.

Nosso sistema de saúde entrou em colapso. E como não poderia deixar de ser, nossa economia está prestes a colapsar. Na verdade, o que se encontra diante de nós é um colapso total: milhares de pessoas morrendo diariamente pelo vírus, milhões de pessoas sem emprego, a miséria e a fome voltando em números assustadores. Não vai demorar, a violência será a regra nas ruas. O sistema político, cooptado por Bolsonaro através da negociação do orçamento, até ensaiou uma reação e exigiu a saída de dois ministros centrais no modo Bolsonaro de fazer política: o Ministro da Saúde, cuja missão era não combater a pandemia, e o Ministro das Relações Exteriores, cuja tarefa consistia em inviabilizar qualquer negociação internacional que pudesse ser uma saída.

Bolsonaro, porém, não poderia parecer derrotado, não ele que se pretende um autocrata, não ele que se refere às Forças Armadas como “suas”, como devendo obedecer, de modo incondicional, suas ordens, seus desejos. Assim, ao invés de recuar, ele avança no ataque à democracia, e demite o General Ministro da Defesa, o que acaba por levar à demissão de toda cúpula militar, pois esta, é o que ficamos sabendo, não teria apoiado o decreto um estado de sítio, a partir do qual Bolsonaro pretendia intervir nos governos estaduais. Diferente do Ministro da Saúde, o alto comando militar não parecia disposto a acatar qualquer ordem, ao menos não de Bolsonaro. A demissão do alto-comento não foi, porém, a vitória que Bolsonaro esperava, uma vez que ele foi obrigado a respeitar, na nomeação dos novos comandantes, a hierarquia interna das Forças Armadas.

Bolsonaro vinha insistindo com os chefes militares para que se pronunciassem publicamente a seu favor e contra o Supremo Tribunal Federal, em ao menos dois momentos: primeiro, quando o supremo decidiu pela autoridade dos governos locais, em especial governos estaduais, de decretar políticas de restrição da mobilidade, e segundo, quando o supremo julgou o caso do presidente Lula. Mas é o conflito com os governadores o que mais mobiliza Bolsonaro e seus seguidores, que vêm nas medidas para aliviar o sistema de saúde ações contra o governo, ações que teriam por objetivo agravar o cenário econômico e assim prejudicar as chances de reeleição do presidente genocida.

Os governadores, em geral, têm conseguido resistir e ter o apoio de suas populações. Muitos têm se reunido em ações conjuntas, inclusive para aquisição de vacinas. Mas a deterioração da economia também trabalha contra eles. Com a deterioração da economia, com o aumento do desemprego e da fome, ao stress no sistema de saúda irá se somar o stress no sistema de segurança. E aqui nós temos um grande problema: a penetração de Bolsonaro nas políticas estaduais é imensa, em especial nas políticas militares. Se ele teve sua ação bloqueada pelo alto-comando das Forças Armadas, ele então volta sua ação para as políticas militares estaduais. Aqui e ali já é possível contar casos de insubordinação. A continuarmos assim, vamos para o cenário desejado por Bolsonaro: terror, caos, morte e desespero.

O trágico é que sequer o impeachment é uma alternativa. Se aprovado, o que hoje não é viável, o impeachment entregaria à presidência ao general Mourão, vice-presidente. Aqui é necessário um recuo histórico. Os militares mais próximos de Bolsonaro, dentre eles o vice-presidente Mourão, são os militares derrotados no processo de retorno à democracia, são os militares que queriam a continuidade da ditadura, aqueles que viviam no ar que infectava os porões de tortura. Ora, não podemos aceitar que os militares que trabalharam para que Bolsonaro chegasse ao poder, e isso vale também para aqueles que agora lhe dizem não, sejam aqueles que irão salvar a democracia destruída por Bolsonaro.

Por agora, só há uma alternativa: governadores, junto com a Câmara dos Deputados e com o Senado, devem criar uma estrutura que possa coordenar nacionalmente o combate ao vírus, algo que o governo federal jamais fez. Ao mesmo tempo, devem aprovar o pacote econômico necessário para dar sustentação aos mais pobres, à pequenas e médias empresas. Para que ambas as ações tenham sucesso, porém, precisam ter sua autoridade reconhecida internacionalmente. A comunidade internacional precisa depositar sua confiança nos atores internos que querem a defesa das vidas e da democracia, ao mesmo tempo que pressiona o governo federal a respeitar o jogo democrático e a parar sua natureza assassina. Não há alternativa fora da democracia. Assim, por mais doloroso que seja, temos de aguardar a eleição em 2022 e vencer Bolsonaro nas urnas. Caso contrário nosso futuro será nosso presente: desespero.

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Daniel Peres

I work with political philosophy and its history, with my focus directed to the subjects of soveraignty, representation, democracy and, of course, power.